quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Os memorandos da tortura

Outras vozes
Sábado, 23 Outubro 2010 02:00
Noam Chomsky
Noam Chomsky
Os memorandos da tortura liberados recentemente pela Casa Branca provocaram choque, indignação e surpresa.
O choque e a indignação são compreensíveis — em particular os testemunhos do Relatório do Comitê dos Serviços das Forças Armadas do Senado sobre o desespero de Cheney-Rumsfeld para encontrar ligações entre o Iraque e a al-Qaida, ligações que foram mais tarde urdidas como justificação para a invasão, independentemente dos fatos.
O ex psiquiatra do exército, o major Charles Burney, testemunhou que "uma grande parte do tempo concentrou-se em tentar estabelecer uma ligação entre a al-Qaida e o Iraque. Quanto mais frustradas as pessoas ficavam por não serem capazes de estabelecer esta ligação... mais pressão havia para recorrer a medidas que pudessem produzir efeitos mais imediatos"; isto é, tortura.
À imprensa McClatchy reportou que um antigo oficial superior dos serviços de informações familiarizado com o tema do interrogatório acrescentou que "a administração Bush aplicou pressão sem descanso sobre os interrogadores para usarem métodos duros sobre os detidos em parte para encontrar provas de cooperação entre a al-Qaida e o regime do antigo ditador iraquiano Saddam Hussein (...) [Cheney e Rumsfeld] exigiram que os interrogadores encontrassem provas de colaboração al-Qaida/Iraque... Houve constante pressão sobre as agências de informações e os interrogadores para fazerem o que fosse preciso para extraírem essa informação dos detidos, especialmente dos poucos de alto valor que possuíamos, e quando as pessoas continuavam a aparecer de mãos vazias, o pessoal de Bush e de Cheney dizia-lhes para tentarem com maior dureza" [1].
Estas foram as revelações mais significativas, praticamente não reportadas.
Enquanto tais testemunhos sobre a depravação e o engano da administração deviam ser de fato chocantes, a surpresa perante o quadro geral exposto é, ainda assim, surpreendente. Um motivo estreito é que, mesmo sem inquérito, era razoável supor que Guantânamo fosse uma câmara de tortura.
Por que outra razão enviar prisioneiros para onde eles estariam fora do alcance da lei – por sinal, um lugar que Washington está a utilizar em violação de um tratado que foi forçado sobre Cuba sob a mira de uma arma? Razões de segurança são alegadas, mas é difícil levá-las a sério. As mesmas expetativas são válidas para as prisões secretas e para as entregas [extraordinárias], e foram cumpridas.
Um motivo mais amplo é que a tortura tem sido uma prática rotineira desde os primeiros dias da conquista do território nacional, e a partir de então, à medida que as empreitadas imperiais do "império nascente" – como George Washington chamava à nova República – se estendiam para as Filipinas, o Haiti e outros lugares.
Além disso, a tortura foi o menor de muitos crimes de agressão, terror, subversão e estrangulamento econômico que escureceram a história dos Estados Unidos, tanto como no caso doutras grandes potências.
Assim, é surpreendente assistir às reações mesmo de alguns dos mais frontais críticos da maldade de Bush: por exemplo, que costumavamos ser "uma nação de ideais morais" e que nunca antes de Bush "os nossos líderes traíram tão completamente tudo o que a nossa nação defende" (Paul Krugman).
Para dizer o mínimo, esse ponto de vista comum reflete uma versão particularmente distorcida da história.
Ocasionalmente, o conflito entre "o que defendemos" e "o que fazemos" tem sido abordado frontalmente. Um distinto acadêmico que empreendeu esta tarefa é Hans Morgenthau, um dos fundadores da teoria realista das relações internacionais.
Num estudo clássico escrito no calor de Camelot, Morgenthau desenvolveu a visão padrão de que os EUA têm uma "finalidade transcendente": estabelecer a paz e a liberdade em casa e mesmo em toda parte, uma vez que "a arena dentro da qual os Estados Unidos devem defender e promover a sua finalidade se tornou mundial".
Mas, como acadêmico escrupuloso, ele reconheceu que o registro histórico é radicalmente inconsistente com a "finalidade transcendente" da América.
Não devemos, contudo, ser enganados por essa discrepância, aconselha Morgenthau: nas suas palavras, não se deve "confundir o abuso da realidade com a própria realidade".
A realidade é a "finalidade nacional" não alcançada revelada pela "evidência da história tal como a nossa mente a reflete". O que aconteceu realmente é apenas o "abuso da realidade".
Confundir abuso da realidade com a realidade é semelhante ao "erro do ateísmo, que nega a validade da religião por motivos similares". Uma comparação apropriada.
A liberação dos memorandos da tortura levou outros a reconhecer o problema. No New York Times, o colunista Roger Cohen fez a revista de um livro do jornalista britânico Geoffrey Hodgson, que concluiu que os EUA são "apenas um país grande, mas imperfeito, entre outros países".
Cohen concorda que a evidência apoia o julgamento de Hodgson, mas considera-o como essencialmente errado. O motivo é a falha de Hodgson em entender que a "América nasceu como uma ideia e, portanto, precisa levar essa ideia por diante".
A ideia americana é revelada pelo nascimento da América como uma "cidade numa colina", uma "noção inspiradora" que reside "no fundo da psique americana"; e pelo "espírito distintivo do individualismo e empreendedorismo americanos" demonstrados na expansão do oeste.
O erro de Hodgson é que ele se limita às "distorções da ideia americana nas últimas décadas", ao "abuso da realidade" nos últimos anos.
Voltemo-nos então para a "própria realidade": a "ideia" de América desde os seus primeiros dias.
A frase inspiradora "cidade numa colina" foi cunhada por John Winthrop em 1630, tomada do Novo Testamento, e delineando o futuro glorioso de uma nova nação "ordenada por Deus".
Um ano antes, a Colônia da Baía de Massachusetts estabeleceu o seu Grande Selo. Retrata um índio com um pergaminho saindo da sua boca. Nele estão as palavras "Venham e ajudem-nos".
Os colonos britânicos eram, assim, humanistas benevolentes, respondendo aos apelos dos miseráveis nativos para serem salvos do seu amargo destino pagão.
O Grande Selo é uma representação gráfica da "ideia da América", desde o seu nascimento. Devia ser exumado das profundezas da psique e exibido nas paredes de cada sala de aula.
Devia certamente aparecer como pano de fundo de toda a adoração estilo Kim Il-Sung do assassino e torturador selvagem Ronald Reagan, que venturosamente se descreveu como o líder de uma "cidade brilhante sobre a colina", enquanto orquestrava alguns dos crimes mais hediondos dos seus anos no cargo, deixando um legado horrível.
Esta proclamação precoce de "intervenção humanitária", para utilizar o termo atualmente em voga, acabou por ser muito parecida com as suas sucessoras, fatos que não eram obscuros para os agentes.
O primeiro Secretário da Guerra, o general Henry Knox, descreveu "a extirpação total de todos os índios nas regiões mais populosas da União" por meios "mais destrutivos para os nativos indígenas que a conduta dos conquistadores do México e do Peru".
Muito depois das suas próprias contribuições significativas para o processo terem passado, John Quincy Adams lamentou o destino "dessa raça infeliz de americanos nativos, que estamos a exterminar com uma crueldade tão impiedosa e pérfida [...] entre os pecados hediondos desta nação, pelos quais acredito que Deus um dia [a] vai trazer a julgamento".
A crueldade implacável e traiçoeira continuou até que "o Oeste foi conquistado". Em vez do julgamento de Deus, os pecados hediondos só trazem elogios pela realização da "ideia" americana [2].
Houve, é certo, uma versão mais conveniente e convencional, expressa, por exemplo, pelo juiz do Supremo Tribunal Joseph Story, que ponderou que "a sabedoria da Providência" levou os nativos a desaparecer como "as folhas secas do Outono", embora os colonos os tenham "sempre respeitado" [3].
A conquista e colonização do Oeste demostrou de fato individualismo e empresa. Empreendimentos colonizadores-colonialistas, a forma mais cruel de imperialismo, normalmente o fazem. O resultado foi saudado pelo respeitado e influente senador Henry Cabot Lodge em 1898.
Apelando à intervenção em Cuba, Lodge elogiou o nosso recorde "de conquista, colonização e expansão territorial inigualado por qualquer povo no século 19", e instou a que "não seja refreado agora", uma vez que os cubanos também nos estão a pedir para ir e ajudá-los [4].
O seu pedido foi respondido. Os EUA enviaram tropas, impedindo assim a libertação de Cuba da Espanha e transformando-a numa colônia na prática, permanecendo desse modo até 1959.
A "ideia americana" é ainda ilustrada pela campanha notável, iniciada quase imediatamente, para restaurar Cuba no seu devido lugar: guerra econômica com o objetivo claramente articulado de punir a população para que derrubasse o governo desobediente; invasão; a dedicação dos irmãos Kennedy a levar "os terrores da terra" a Cuba (a frase do historiador Arthur Schlesinger, na sua biografia de Robert Kennedy, que assumiu a tarefa como uma das suas maiores prioridades); e outros crimes que continuam até ao presente, desafiando a opinião pública mundial praticamente unânime.
Há certamente críticos, que sustentam que os nossos esforços para levar a democracia a Cuba falharam, por isso devemos recorrer a outras formas de "ir e ajudá-los".
Como é que estes críticos sabem que o objetivo era levar a democracia? Há provas: assim o proclamam os nossos líderes. Há também contra-provas: o registro interno desclassificado, mas isso pode ser descartado como apenas "o abuso da história".
O imperialismo norte-americano é muitas vezes recuado à tomada de Cuba, Porto Rico e Havaí, em 1898. Mas isso é sucumbir ao que o historiador do imperialismo Bernard Porter chama de "falácia da água salgada", a ideia de que a conquista só se torna imperialismo quando atravessa água salgada.
Assim, se o Mississippi se assemelhasse ao mar da Irlanda, a expansão ocidental teria sido imperialismo. De Washington a Lodge, aqueles empenhados na empresa tinham uma compreensão mais clara.
Depois do sucesso da intervenção humanitária em Cuba em 1898, o próximo passo na missão atribuída pela Providência foi conferir "as bênçãos da liberdade e da civilização sobre todas as pessoas salvas" das Filipinas (nas palavras da plataforma do Partido Republicano de Lodge) – pelo menos àqueles que sobreviveram ao ataque assassino e à tortura em grande escala e outras atrocidades que o acompanharam.
Estas almas afortunadas foram deixadas à mercê da polícia filipina instalada pelos EUA dentro de um modelo recém-concebido de dominação colonial, contando com forças de segurança treinadas e equipadas para modos sofisticados de vigilância, intimidação e violence [5].
Modelos similares foram adotados em muitas outras áreas onde os EUA impuseram Guardas Nacionais brutais e outras forças clientes, com consequências que deviam ser bem conhecidas.
Nos últimos sessenta anos, vítimas em todo o mundo também sofreram o "paradigma da tortura" da CIA, desenvolvido a um custo que chegou a bilhões de dólares anualmente, segundo o historiador Alfred McCoy, que mostra que os métodos surgiram com pouca alteração em Abu Ghraib.
Não há exagero quando Jennifer Harbury intitula o seu penetrante estudo do registro de tortura dos EUA, Truth, Torture, and the American Way [Verdade, Tortura, e o Modo de Vida Americano].
É altamente enganoso, para dizer o mínimo, quando os investigadores da descida do bando de Bush ao esgoto lamentam que "ao empreender a guerra contra o terrorismo, a América perdeu o seu caminho" [6].
Bush-Cheney-Rumsfeld etc. introduziram inovações importantes. Normalmente, a tortura é entregue a subsidiárias, não realizada diretamente por americanos nas câmaras de tortura instaladas pelo governo.
Allan Nairn, que levou a cabo algumas das investigações mais reveladores e corajosas da tortura, salienta que "O que a [proibição de tortura] de Obama ostensivamente exclui é aquela pequena porcentagem de tortura agora feita por americanos, ao mesmo tempo que mantém o grosso do sistema da tortura, que é feita por estrangeiros sob patrocínio dos EUA.
Obama poderia deixar de apoiar as forças estrangeiras que torturam, mas optou por não o fazer". Obama não encerrou a prática da tortura, observa Nairn, mas "meramente a reposicionou", restaurando-a segundo a norma, uma questão de indiferença para com as vítimas.
Desde o Vietnã, "os EUA viram a sua tortura principalmente feita para si por procuração – pagando, armando, treinando e orientando estrangeiros que a praticavam, mas normalmente tendo o cuidado de manter os americanos pelo menos um discreto passo ao lado".
A proibição de Obama "nem sequer proíbe a tortura direta por americanos fora de ambientes de "conflito armado", que é onde de qualquer forma acontece muita da tortura, uma vez que muitos regimes repressivos não estão em conflito armado [...] o seu é um retorno ao status quo anterior, o regime de tortura de Ford até Clinton, que, ano após ano, muitas vezes produzia mais agonia por meio de tortura apoiada pelos EUA do que a que foi produzida durante os anos Bush/Cheney" [7].
Às vezes, o envolvimento na tortura é mais indireto. Num estudo de 1980, o especialista em assuntos da América Latina Lars Schoultz concluiu que o auxílio dos EUA "tendeu a fluir de forma desproporcionada para os governos latino-americanos que torturam os seus cidadãos,... para os relativamente notórios violadores dos direitos humanos fundamentais do hemisfério". Isso inclui a ajuda militar, é independente da necessidade, e atravessa os anos Carter.
Estudos mais amplos de Edward Herman encontraram a mesma correlação, e também sugeriram uma explicação. Sem surpresa, a ajuda dos EUA tende a correlacionar-se com um clima favorável para as operações de negócios, e isso é normalmente melhorado pelo assassinato de organizadores de trabalhadores e camponeses e de ativistas dos direitos humanos, e por outras ações do mesmo tipo, produzindo uma segunda correlação entre a ajuda e violações flagrantes dos direitos humanos [8].
Estes estudos precedem os anos Reagan, quando o assunto não valia a pena estudar porque as correlações eram tão claras. E as tendências continuam até ao presente.
Não admira que o presidente nos aconselhe a olhar em frente, não para trás – uma doutrina conveniente para aqueles que seguram os tacos. Aqueles que são batidos por eles tendem a ver o mundo de forma diferente, para nosso grande aborrecimento.
Pode argumentar-se que a aplicação do "paradigma da tortura" da CIA não viola a Convenção sobre a Tortura de 1984, pelo menos como Washington a interpreta.
Alfred McCoy assinala que o paradigma altamente sofisticado da CIA, baseado na "mais devastadora técnica de tortura do KGB", fica-se basicamente pela tortura mental, não a bruta tortura física, que é considerada menos eficaz em transformar as pessoas em vegetais complacentes.
McCoy escreve que a administração Reagan reviu cuidadosamente a Convenção Internacional de Tortura "com quatro 'reservas' diplomáticas detalhadas focadas em apenas uma palavra nas 26 páginas impressas da Convenção", a palavra "mental".
Estas "reservas" diplomáticas intrincadamente construídas redefiniram a tortura, tal como interpretada pelos Estados Unidos, para excluir a privação sensorial e a dor auto-infligida – exatamente as técnicas que a CIA tinha refinado a tão grande custo".
Quando Clinton enviou a Convenção da ONU ao Congresso para ratificação em 1994, incluiu as reservas Reagan. O Presidente e o Congresso, por conseguinte, dispensaram o núcleo do paradigma da tortura da CIA da interpretação estadunidense da Convenção de Tortura; e essas reservas, observa McCoy, foram "reproduzidas na íntegra na legislação nacional aprovada para dar força jurídica à Convenção das Nações Unidas".
Essa é a "mina terrestre política" que "detonou com tal força fenomenal" no escândalo de Abu Ghraib e na vergonhosa Lei das Comissões Militares que foi aprovada com apoio bipartidário em 2006.
Assim, após a primeira revelação do recurso de Washington à tortura, o professor de direito constitucional Sanford Levinson observou que talvez pudesse ser justificado em termos da definição da tortura "amiga do interrogador" adotada por Reagan e Clinton na sua revisão do direito internacional dos direitos humanos [9].
Bush, é claro, foi além dos seus predecessores ao autorizar violações prima facie do direito internacional, e várias das suas inovações extremistas foram canceladas pelos Tribunais.
Enquanto Obama, como Bush, afirma eloquentemente o nosso firme compromisso com o direito internacional, parece determinado em restabelecer substancialmente as medidas extremistas de Bush. No importante caso de Boumediene vs Bush em junho de 2008, o Supremo Tribunal rejeitou como inconstitucional a alegação da administração Bush de que os prisioneiros de Guantânamo não estão habilitados ao direito de habeas corpus.
Glenn Greenwald faz o rescaldo. Procurando "preservar o poder de raptar pessoas de todo o mundo" e aprisioná-las sem o devido processo, a administração Bush decidiu enviá-las para Bagram, tratando "a decisão Boumediene, fundamentada nas nossas mais elementares garantias constitucionais, como se fosse uma espécie de jogo bobo – transporte os seus prisioneiros raptados para Guantânamo e eles têm direitos constitucionais, mas leve-os em vez disso para Bagram e pode fazê-los desaparecer para sempre, sem processo judicial".
Obama adotou a posição de Bush, "dando entrada no tribunal federal a uma alegação que, em duas frases, declarava que abraçava a mais extremista teoria de Bush sobre este assunto", argumentando que os prisioneiros levados para Bagram de qualquer parte do mundo – no caso em questão, iemenitas e tunisinos capturados na Tailândia e nos Emirados Árabes Unidos – "podem ser presos indefinidamente sem direitos de qualquer espécie – desde que sejam mantidos em Bagram em vez de Guantânamo".
Em março, um juiz federal nomeado por Bush "rejeitou a posição Bush/Obama e sustentou que a argumentação de Boumediene se aplica a Bagram tanto como a Guantânamo".
A administração Obama anunciou que iria apelar da decisão, colocando assim o Departamento de Justiça de Obama "diretamente à direita de um juiz extremamente conservador, favorável ao poder do executivo, 43º juiz nomeado por Bush, em questões do poder executivo e de detenções sem o devido processo", em violação radical das promessas de campanha de Obama e de posições anteriores [10].
O caso de Rasul versus Rumsfeld parece estar a seguir uma trajetória similar. Os queixosos alegaram que Rumsfeld e outros altos funcionários eram responsáveis pela sua tortura em Guantânamo, para onde eles foram enviados depois de terem sido capturados pelo senhor da guerra uzbeque Rashid Dostum.
Dostum é um bandido famoso que era então um líder da Aliança do Norte, a facção afegã apoiada pela Rússia, Irã, Índia, Turquia e os Estados da Ásia Central, a que se juntou os EUA quando atacaram o Afeganistão em outubro de 2001.
Dostum entregou-o então à custódia dos EUA, supostamente por uma recompensa. Os queixosos alegaram que tinham viajado para o Afeganistão para oferecer ajuda humanitária.
O governo Bush procurou que o caso fosse rejeitado. O Departamento de Justiça de Obama preencheu uma minuta apoiando a posição de Bush de que os funcionários do governo não são responsáveis por torturas e outras violações do devido processo legal neste caso, porque os tribunais ainda não tinham estabelecido claramente os direitos de que os prisioneiros gozam [11].
Também é reportado que Obama tem a intenção de reavivar as comissões militares, uma das violações mais graves do Estado de Direito durante os anos Bush.
Há uma razão. "Funcionários que trabalham na questão de Guantânamo dizem que os advogados do governo estão preocupados com a eventualidade de enfrentarem obstáculos significativos para julgar alguns suspeitos de terrorismo em tribunais federais. Os juízes poderiam tornar difícil processar detidos que foram sujeitos a tratamento brutal ou aos procuradores usar provas de ouvir dizer recolhidas pelas agências de inteligência" [12]. Uma falha grave no sistema de justiça criminal, ao que parece.
Há muito debate sobre se a tortura tem sido eficaz na obtenção de informações – sendo o pressuposto, aparentemente, que se for eficaz, então pode ser justificada. Pelo mesmo argumento, quando a Nicarágua capturou o piloto dos EUA Eugene Hasenfuss, em 1986, após derrubar o seu avião que levava ajuda aos Contra de Reagan, eles não deveriam tê-lo julgado, considerá-lo culpado, e depois enviá-lo de volta aos EUA, como fizeram.
Em vez disso, eles deveriam ter aplicado o paradigma de tortura da CIA para tentar extrair informações sobre outras atrocidades terroristas a ser planeadas e implementadas em Washington, não pouca coisa para um país pequeno e pobre sob ataque terrorista pela superpotência global.
E a Nicarágua certamente devia ter feito o mesmo se tivesse sido capaz de capturar o principal coordenador do terrorismo, John Negroponte, então embaixador em Honduras, mais tarde nomeado czar do contraterrorismo, sem suscitar um murmúrio.
Cuba deveria ter feito o mesmo se tivesse sido capaz de pôr as mãos nos irmãos Kennedy. Não há necessidade de trazer à tona o que as vítimas deviam ter feito a Kissinger, Reagan, e outros principais comandantes terroristas, cujas façanhas deixam a al-Qaida ao longe, e que, sem dúvida, tinham amplas informações que poderiam ter evitado mais "bombas-relógio".
Tais considerações, que abundam, nunca parecem surgir no debate público. De acordo com isso, sabemos desde logo como avaliar os fundamentos sobre a informação valiosa.
Há, com certeza, uma resposta: o nosso terrorismo, ainda que certamente terrorismo, é benigno, provindo como provém da cidade sobre a colina. Talvez a exposição mais eloquente dessa tese tenha sido apresentada pelo editor da New Republic, Michael Kinsley, um porta-voz respeitado da "esquerda".
A America's Watch (Human Rights Watch) tinha protestado contra a confirmação do Departamento de Estado de ordens oficiais às forças terroristas de Washington para atacar "alvos suaves" – alvos civis indefesos – e evitar o exército nicaraguense, como puderam fazer, graças ao controle pela CIA do espaço aéreo da Nicarágua e aos sofisticados sistemas de comunicações fornecidos aos contra.
Em resposta, Kinsley explicou que os ataques terroristas dos EUA contra alvos civis são justificados desde que satisfaçam critérios pragmáticos: uma "política sensata [deve] respeitar o critério de análise custo-benefício", uma análise da "quantidade de miséria e sangue que será derramado, e a probabilidade de que a democracia vá emergir do outro lado" [13] – "democracia" como as elites dos EUA determinam.
Os seus pensamentos não suscitaram nenhum comentário, que seja do meu conhecimento, aparentemente considerados aceitáveis. Parece seguir-se, então, que os líderes dos EUA e os seus agentes não são culpados pela realização de tais políticas sensatas de boa fé, mesmo que o seu julgamento possa, por vezes, ter falhas.
Talvez a culpabilidade fosse maior, pelas normas morais prevalecentes, se fosse descoberto que a tortura da administração Bush custa vidas americanas.
Essa é, de fato, a conclusão retirada pelo major estadunidense Matthew Alexander [pseudônimo], um dos mais experientes interrogadores no Iraque, que extraiu "a informação que levou a que os militares dos EUA fossem capazes de localizar Abu Musab al-Zarqawi, o chefe da al-Qaida no Iraque", relata o correspondente Patrick Cockburn.
Alexander expressa apenas desprezo pelos métodos de interrogatório severo: "O uso da tortura pelos EUA", acredita ele, não só não suscita nenhuma informação útil, mas "mostrou-se tão contraprodutivo que pode ter levado à morte de tantos soldados dos EUA como civis mortos no 11 de setembro".
De centenas de interrogatórios, Alexander descobriu que os combatentes estrangeiros vieram para o Iraque em reação aos abusos em Guantânamo e Abu Ghraib, e que eles e os seus aliados domésticos se viraram para os atentados suicidas e outros atos terroristas pela mesma razão [14].
Também há evidências crescentes de que a tortura de Cheney-Rumsfeld criou terroristas. Um caso cuidadosamente estudado é o de Abdallah al-Ajmi, que foi preso em Guantânamo sob a acusação de "envolvimento em dois ou três combates com a Aliança do Norte".
Acabou no Afeganistão depois de ter falhado em chegar à Tchetchenia para lutar contra a invasão russa. Após quatro anos de tratamento brutal em Guantânamo, foi devolvido ao Kuwait.
Mais tarde, ele encontrou o seu caminho para o Iraque, e em março de 2008 dirigiu um caminhão-bomba carregado para um complexo militar iraquiano, matando-se a si e a 13 soldados – "o ato de violência singular mais hediondo cometido por um antigo detido de Guantânamo", reporta o Washington Post, o resultado direto da sua prisão abusiva, conclui o seu advogado de Washington [15]
Tudo quanto uma pessoa razoável esperaria.
Outro pretexto para a tortura é o contexto: a "guerra contra o terrorismo" que Bush declarou após o 11 de Setembro, um "crime contra a humanidade" levado a cabo com "maldade e crueldade impressionante", como Robert Fisk relatou.
Esse crime tornou a lei internacional tradicional "inusitada" e "obsoleta", segundo o parecer dado a Bush pelo seu Assessor Jurídico, Alberto Gonzales, mais tarde nomeado procurador-geral. A doutrina tem sido amplamente reiterada em uma ou outra forma de comentário e análise.
O ataque de 11 de Setembro foi, sem dúvida, único, em muitos aspectos. Um é o lugar para onde as armas estavam apontadas: normalmente é no sentido oposto. Na verdade, esse foi o primeiro ataque de alguma consequência no território nacional desde que os britânicos incendiaram Washington em 1814.
Outra característica única é a escala de terror por um ator não-estatal. Mas, horrível como foi, poderia ter sido pior.
Suponha-se que os autores haviam bombardeado a Casa Branca, matado o presidente e estabelecido uma cruel ditadura militar que matasse 700.000 pessoas e torturasse de 50 a 100.000, criado um enorme centro de terror internacional que levasse a cabo assassinatos e ajudasse a impor ditaduras militares comparáveis em outros lugares, e implementado doutrinas econômicas que destruíssem a economia de modo tão radical que o estado teria de praticamente tomar conta das coisas uns anos mais tarde.
Isso teria sido muito pior do que o 11 de Setembro de 2001. E isso aconteceu, no que os latino-americanos frequentemente chamam de "o primeiro 11 de Setembro", em 1973. Os números foram alterados para equivalentes per capita, uma forma realista de medir crimes.
A responsabilidade remonta em linha reta a Washington. Consequentemente, a – bastante apropriada – analogia está fora da consciência, enquanto os fatos são expedidos para o "abuso da realidade" que os ingênuos chamam história.
Convém também recordar que Bush não declarou a "guerra contra o terrorismo", ele redeclarou-a. Vinte anos antes, a administração Reagan assumiu o cargo declarando que uma peça central da sua política externa seria uma guerra contra o terrorismo, "a praga dos tempos modernos" e "um retorno à barbárie no nosso tempo", para dar um exemplo da retórica febril da época.
Essa guerra contra o terrorismo foi também excluída da consciência histórica, porque o resultado não pode ser facilmente incorporado ao cânone: centenas de milhares chacinados nos países da América Central arruinados e muitos mais noutros lugares.
Entre eles, um número estimado de 1,5 milhões nas guerras terroristas patrocinadas em países vizinhos pelo aliado favorecido por Reagan, a África do Sul do apartheid, que teve de defender-se do Congresso Nacional Africano de Nelson Mandela, uma dos "mais notórios grupos terroristas" do mundo, determinou Washington em 1988 .
Para ser justo, deve acrescentar-se que, 20 anos depois, o Congresso votou para retirar o CNA da lista de organizações terroristas, pelo que Mandela pode agora, finalmente, entrar nos EUA sem obter uma autorização do governo [16].
A doutrina reinante é por vezes chamada de "excepcionalismo americano". Não é nada disso. Provavelmente, é quase universal entre as potências imperiais.
A França aclamava a sua "missão civilizadora", enquanto o Ministro da Guerra francês apelava ao "extermínio da população nativa" da Argélia. A nobreza do Reino Unido era uma "novidade no mundo", declarou John Stuart Mill, enquanto instava a que este poder angelical não delongasse mais a completar a sua libertação da Índia.
Este ensaio clássico sobre a intervenção humanitária foi escrito logo após a revelação pública das atrocidades horripilantes do Reino Unido em 1857 na supressão da revolta indiana.
A conquista do resto da Índia foi em grande parte um esforço para obter um monopólio do ópio para o enorme empreendimento de narcotráfico do Reino Unido, de longe o maior na história do mundo, delineado principalmente para obrigar a China a aceitar bens manufaturados do Reino Unido.
Da mesma forma, não há razão para duvidar da sinceridade dos militaristas japoneses que estavam a trazer um "paraíso terrestre" para a China sob a benigna tutela japonesa, enquanto levavam a cabo a violação de Nanquim. A história está repleta de episódios gloriosos semelhantes.
Enquanto permanecerem firmemente implantadas tais teses "excepcionalistas", as revelações ocasionais do "abuso da história" podem sair pela culatra, servindo para apagar crimes terríveis.
O massacre de My Lai foi uma mera nota de rodapé para as atrocidades vastamente maiores dos programas de pacificação pós-Tet, ignoradas enquanto a indignação se centrava nesse único crime.
O Watergate foi sem dúvida criminoso, mas o furor sobre ele iludiu crimes incomparavelmente piores em casa e no exterior – o assassinato organizado pelo o FBI do organizador negro Fred Hampton, como parte da infame repressão COINTELPRO, ou o bombardeamento do Camboja, para citar dois exemplos flagrantes.
A tortura é horrível o suficiente; a invasão do Iraque é um crime muito pior. Muito frequentemente, as atrocidades seletivas têm esta função.
A amnésia histórica é um fenômeno perigoso, não só porque mina a integridade moral e inteletual, mas também porque estabelece as bases para crimes que se avizinham.
Notas
[1] Report by the Senate Armed Services Committee on Detainee Treatment, pág. 72. Jonathan Landay, "Abusive tatics used to seek Iraq-al Qaida link", McClatchy news, 21/04/2009. Gordon Trowbridge, "Levin: Iraq link goal of torture", Detroit News, 22/04/2009.
[2] Reginald Horsman, Expansion and American Indian Policy (Michigan State, 1967); William Earl Weeks, John Quincy Adams and American Global Empire (Kentucky, 1992).
[3] Sobre o registro de justificações providencialistas para os crimes mais chocantes, e o seu papel mais geral na fabricação da "ideia americana", ver Nicholas Guyatt, Providence and the Invention of the United States, 1607-1876 (Cambridge 2007).
[4] Citado por Lars Schoultz, That Infernal Little Cuban Republic (North Carolina, 2009).
[5] Ibid. Alfred McCoy, Policing America's Empire (Wisconsin, 2009).
[6] McCoy, A Question of Torture: CIA Interrogation, from the Cold War to the War on Terror (Metropolitan, 2006). Também McCoy, The U.S. Has a History of Using Torture, History News Network, 12/04/2006. Harbury, Truth, Torture, and the American Way (Beacon, 2005). Jane Mayer, The Battle for a Country's Soul, The New York Review of Books, 14/08/2008.
[7] Allan Nairn, The Torture Ban that Doesn't Ban Torture: Obama's Rules Keep It Intact, and Could Even Accord With an Increase in US-Sponsored Torture Worldwide, News and Comment, 24/01/2009.
[8] Schoultz, Comparative Politics, Jan. 1981. Herman, in Chomsky e Herman, Political Economy of Human Rights I, cap. 2.1.1 (South End, 1979); Herman, Real Terror Network, 1 (South End, 1982), 26 ff.
[9] McCoy, "US has a history". Levinson, "Torture in Iraq & the Rule of Law in America", Daedalus, Verão de 2004.
[10] Glenn Greenwald, Obama and habeas corpus – then and now, Salon, 11/04/2009.
[11] Daphne Eviatar, Obama Justice Department Urges Dismissal of Another Torture Case, Washington Independent, 12/03/2009.
[12] William Glaberson, US May Revive Guantanamo Military Courts, NYT, 01/05/2009.
[13] Kinsley, Wall Street Journal, 26/03/1987.
[14] Cockburn, "Torture? It probably killed more Americans than 9/11", Independent, 06/04/2009.
[15] Anónimo (Rajiv Chandrasekaran), "From Captive to Suicide Bomber", WP, 22/02/2009.
[16] Joseba Zulaika e William Douglass, Terror and Taboo (Routledge, 1996). Jesse Holland, AP, 09/05/2009. NYT.
Fonte: Info Alternativa.
Fonte em português: Diário Liberdade

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