quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

A defesa do individualismo em "A Guerra dos Tronos"



A literatura de fantasia é focada no mito do herói, sua trajetória até a redenção e a salvação da sociedade a qual pertence, por sua semelhança com os mitos redentores religiosos, a sua sensibilização com o leitor se torna mais fácil. Ao mesmo tempo ela se molda ao tempo histórico no qual ela é escrita e publicada, de Rei Arthur até Harry Potter, e terminam por representar as ideias da classe dominante.

Os romances de cavalaria como Rei Arthur eram dedicados aos destacados senhores feudais do período como os reis, ou serviam para manter a esperança de unificação através da construção de uma identidade nacional para ficar no exemplo de Rei Arthur novamente. Com o desenvolvimento da imprensa, a literatura será fundamental na construção das línguas modernas e sua disseminação, muito embora até meados do século XX a alfabetização ainda foi um luxo para boa parte da população mundial.

Com o aumento da alfabetização após a Segunda Guerra Mundial (como uma das conquistas dos trabalhadores, e para tentar combater o comunismo), a literatura de fantasia se tornará um dos nichos de mercado com mais leitores.

O maior expoente dessa literatura de fantasia moderna será o sul africano J. R. R. Tolkien, em suas principais obras, o Hobbit, e os três livros da série o Senhor dos Anéis, Tolkien criará um mundo fantástico com criaturas fantásticas, povos com uma história própria, e até mesmo uma língua (Tolkien era especialista em inglês arcaico). Serão obras lidas por milhões de pessoas, mas não isentas de polêmicas, principalmente no que diz respeito aos homens. A Terra Média, o mundo criado por Tolkien, era um retrato da própria Europa do período da Segunda Guerra Mundial, os orientais e os negros,por exemplo, são vistos de forma preconceituosa e por serem inferiores são dominados por Sauron o Senhor da Escuridão (que pode representar tanto os soviéticos como os nazistas), principalmente quando comparados à raça dos reis dos homens, nativos da Ilha de Numenor (uma clara analogia com a Inglaterra), e descendentes da união carnal entre elfos e homens.

Os Hobbits ,por exemplo, representam a aversão do autor à opressão moderna representada pelo mundo industrial, seu modo de vida simples, idílico, contrasta bem com a modernidade imposta à força por Saruman. Os cavaleiros de Rohan, fundamentais para ajudar os descendentes dos reis, os gondorianos, representam a ajuda dos estadunidenses na guerra aos ingleses para derrotar os alemães.

Colega de Tolkien, e convertido ao cristianismo, C.S Lewis outro inglês expoente da literatura de fantasia, em suas Crônicas de Nárnia, fazia uma analogia com o cristianismo. A adaptação de sua obra ao cinema, embora visando lucros semelhantes ao de Senhor dos Anéis e Harry Potter foi financiado por uma organização de cristãos fundamentalistas dos EUA, que queriam disseminar os ensinamentos cristãos presentes nas analogias das passagens da obra de Lewis.

Em Harry Potter, por mais que se dê uma nova roupagem ao mito do herói, o mal representado por Voldemort, e combatido por Potter o escolhido, lembra o nazismo, já que o antagonista defendia um mundo no qual os “não mágicos” fossem subordinados aos “mágicos”, apelando para uma pureza na “raça” dos mágicos.

Em Senhor dos anéis, Harry Potter e Crônicas de Nárnia é possível traçar principalmente no núcleo desses romances, ainda que uma tímida luta contra a opressão e contra a desigualdade, a defesa da ideia do mito do herói, da redenção, estimula por outro lado a individualidade, a luta pela liberdade, e a crença de crescimento individual como motor do sucesso do indivíduo na sociedade burguesa, alguns dos cernes da ideologia liberal propagada pela burguesia. Além de seu caráter mercadológico, já que são produtos inteiramente inseridos na moderna indústria cultural.

Recentemente a literatura de fantasia ganhou um novo fenômeno mercadológico, a série de fantasia, criada pelo estadunidense George R. R. Martin, a Guerra dos Tronos. A Guerra dos Tronos representa uma quebra paradigmática dentro desse nicho de vários conceitos, além de se constituir em uma obra que representa a consolidação dos ideais pós modernos e neoliberal pela literatura.

Na obra, a intestina e realista luta pelo poder, permeada por traições, incesto, corrupção, sexo, quebra os ideais de bondade presente no mito do herói, os protagonistas do livro, que representam a honra, um dos atributos essenciais do herói são sempre penalizados por essa honra. Como no mercado, onde o individualismo e a ânsia pela conquista de mais poder (na sociedade capitalista, assim como em Westeros, capital é poder, não à toa a casa dos banqueiros, a Lannister é a mais poderosa, e faz dos honrados Starks, gato e sapato deles) é o que move todos os personagens, todas as casas.

A destruição de crença, de valores, de paradigmas, representadas pelo pós modernismo é uma constante, apenas o individuo mais astuto, e com capital consegue vencer e prosperar, os Starks, os honrados podem ser protagonistas, mas sua honra os impede de serem ótimos competidores, ao contrário dos Lannister, que além de possuírem a base material de poder, o capital, são excelente competidores por jogarem fora qualquer acordo, amizade, laço de parentesco, em nome do poder, do capital.

Tamanha semelhança com a sociedade burguesa atual faz da obra um exemplar do realismo, e não da literatura fantástica. Ao invés da identificação direta com os ideais do mito do herói e com a religião, é justamente o que o afasta dela que torna a obra um sucesso. Como disse Karl Marx na Ideologia Alemã:

As ideias da classe dominante são, em todas as épocas, as ideias dominantes, ou seja, a classe que é o poder material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, o seu poder espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios para a produção material dispõe assim, ao mesmo tempo, dos meios para a produção espiritual, pelo que lhe estão assim, ao mesmo tempo, submetidas em média as ideias daqueles a quem faltam os meios para a produção espiritual. As ideias dominantes não são mais do que a expressão ideal [ideell] das relações materiais dominantes, as relações materiais dominantes concebidas como ideias; portanto, das relações que precisamente tornam dominante uma classe, portanto as ideias do seu domínio.[1]

A literatura, assim como o cinema, pinturas, fotografia, música, não são separadas da sociedade, mas antes de tudo um produto direto da sociedade e da época histórica na qual são criadas. A literatura de fantasia, muito embora possua características claras de mercadoria, possui como outras obras culturais esse caráter duplo de mercadoria e de reprodução ideológica das ideias. Assim mesmo que dentro de analogias, a literatura de fantasia termina por disseminar as ideias da burguesia. Em sua fase de explosão com Tolkien e Lewis, ela ocorria de forma indireta, agora, com Martin e sua Guerra dos Tronos ela é latente, a busca por poder, por capital, pelo sucesso é o que vale, camaradagem, honra, solidariedade por sua vez é algo ruim, que atrapalha o individuo, que o leva ao fracasso, não importa que em uma sociedade onde o individualismo reine, a barbárie impere, afinal com tal grau de individualismo o meu sucesso permite comprar proteção contra a barbárie dos outros.

João Vicente Nascimento Lins 02/01/2013


[1] Karl Marx, Friedrich Engels - Ideologia Alemã - http://www.marxists.org/portugues/marx/1845/ideologia-alema-oe/index.htm acessado em 02/01/2013.