sábado, 13 de novembro de 2010

Choque de ordem contra a cultura popular

Choque de ordem contra a cultura popular

Prefeitura do Rio de Janeiro fortalece o controle sobre as manifestações populares

09/11/2010

Ana Lucia Vaz
do Rio de Janeiro (RJ)

Para fazer um espetáculo teatral gratuito em praça pública, no Rio de Janeiro (RJ), o artista precisa dar entrada num pedido de “nada a opor”, na Secretaria Municipal de Ordem Pública, com 30 dias de antecedência. Já os blocos de carnaval de rua tiveram até o dia 24 de setembro deste ano para pedir a “autorização” da Prefeitura para desfilar no feriado de 2011. É o choque de ordem na cultura popular carioca.
Atores e coordenadores de blocos afirmam que as normas da Prefeitura são inconstitucionais. “Não é concebível que o prefeito [Eduardo Paes (PMDB)] diga quem pode e quem não pode fazer cultura de graça, na rua, para o povo!”, protesta Luis Otávio Almeida, coordenador do Cordão do Boi Tolo e membro da Desliga de Blocos. No dia 19 de setembro, a Desliga promoveu sua segunda Bloqueata, um carnaval-protesto contra o decreto municipal.
Pouco antes, no dia 23 de agosto, os artistas de teatro e circo de rua fizeram manifestação artística na Cinelândia, também em nome da liberdade de expressão. No manifesto, os artistas protestavam contra “a injustiça que a Prefeitura do Rio vem cometendo [...], proibindo os espetáculos de Teatro de Rua e Circo, gratuitos, nas praças públicas”.
A prática dos artistas de rua sempre foi informar à região administrativa onde o evento aconteceria. Também os blocos avisam à região administrativa e à polícia. Em 2009, a Prefeitura decretou que os blocos devem aguardar sua “autorização”. Já os artistas teatrais dependem da Secretaria de Ordem Pública.
Segundo o artigo 5º da Constituição brasileira, “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independente de censura ou licença”. Como, então, uma prefeitura pode autorizar ou proibir tais manifestações?
Sobre o carnaval, o prefeito decretou: “Os representantes das bandas e blocos carnavalescos deverão protocolar os pedidos de autorização”. Os documentos exigidos vão do CPF do responsável pelo bloco à comprovação de que já informaram diversas instâncias do governo. O decreto ainda ameaça: “O não cumprimento das normas [...] implicará no indeferimento do pedido para o carnaval do ano subseqüente”.
Se resolver desfilar sem autorização, o que acontece? O Cordão do Boi Tolo já ignorou o decreto de 2009. Aliás, problema com a polícia, no carnaval, não é exatamente uma novidade. É quase uma brincadeira. Jorge Sapia, coordenador do bloco “Meu Bem Volto Já”, aposta que não tem como proibir os blocos que não se registrarem. “A lógica do carnaval é exatamente driblar a lógica oficial. O movimento de gato e rato com a polícia”, afirma.
Difícil reprimir um bloco. Mas, segundo Luis Otávio, acontecem repressões pontuais, a pequenos grupos, dependendo da decisão dos policiais de plantão.
A situação do teatro de rua é semelhante. Depende da sorte. Muitas vezes, mesmo considerando inconstitucional, o grupo obedece à exigência da Prefeitura porque “é muito desagradável você chegar na praça e a polícia não te deixar trabalhar”, explica Richard Riguetti, um dos articuladores da Rede Brasileira de Teatro de Rua.
Ele pretende registrar denúncia contra a Prefeitura no Ministério Público, por impedir a apresentação de seu grupo, o Off-Sina, em Campo Grande. O espetáculo “Nego Beijo” foi reprimido por “15 homens do choque de ordem”, apesar de ter autorização da Secretaria Municipal de Cultura e o “nada a opor” da Sub-Prefeitura de Campo Grande.

Limpeza das ruas
O protesto do teatro de rua, no dia 23 de agosto, aconteceu em várias cidades do Brasil. A experiência com a repressão policial e a privatização do espaço público que restringe a liberdade de expressão do teatro popular tem se generalizado pelo país. Em São Paulo (SP) e Belo Horizonte (MG), o artista que quer levar sua arte gratuitamente ao povo tem que pagar um alvará à Prefeitura.
Na capital mineira, a Praça da República, onde fica o palácio do Governo e a Câmara Legislativa, foi adotada pela empresa Vale. Se quiser se apresentar lá, além de pagar alvará à administração municipal, o artista tem que pedir autorização à empresa. Em algumas praças, o teatro de rua está proibido. “É a privatização do espaço público”, denuncia Herculano Dias, do grupo Tá na Rua.
Richard Riguetti elogia a política de cultura do governo federal que, segundo ele, desenvolveu um verdadeiro plano de ação para estimular a produção artística e cultural do povo, através do Plano Nacional de Cultura e dos pontos de cultura.
Mas há uma contradição entre a política nacional e a prática local, nas cidades. Para Amir Haddad, do grupo Tá na Rua, a onda progressista de Brasília não chega “embaixo”. “A gente tem um governo federal progressista. No entanto, as políticas públicas de educação, de segurança... todas elas têm um ar fascista de controle”, dispara.
Segundo Haddad, ainda resiste uma idéia de Estado mínimo. Mas ele é “mínimo nas políticas públicas das áreas sociais e culturais” e, ao mesmo tempo, “poderoso, totalitário, nas áreas do controle da liberdade individual e das possibilidades de manifestação do cidadão”.
É “a ordem da gaveta vazia”. Não tem política de cultura, nem de educação. Só tem política de controle. “Isso é muito assustador”, completa.
Criador do grupo de teatro “Tá na Rua”, que desde 1980 atua nas ruas usando o teatro como espaço de expressão e transformação popular, Haddad vê nessa tendência fascista reflexos da crise da civilização ocidental. Para ele, o desejo de controle cresce na proporção em que definham os valores civilizatórios: “Existe uma coisa que é pior que o fascismo dos partidos políticos. É o fascismo dentro das pessoas. Uma paranóia que leva as pessoas a se defenderem de qualquer ataque, a tentar se garantir com segurança por todo lado, afirmar uma única verdade, não ter contato com a diferença”.
Nas cidades onde há administrações comprometidas com algum nível de participação popular, a tendência é de democratização do debate sobre políticas culturais. Durante as administrações petistas de Luiza Erundina e Marta Suplicy, São Paulo aprovou leis regulamentando uma política cultural que especifica valores a serem investidos, assim como conselhos e critérios para distribuição. Niterói (RJ) elegeu, recentemente, seu conselho de cultura, seguindo as orientações do Plano Nacional de Cultura.
Já no Rio de Janeiro, todas as ações da Prefeitura são no sentido de centralizar as decisões sobre cultura. Mais precisamente, as decisões sobre financiamentos. A administração municipal compra grandes espetáculos e patrocina grandes produções comerciais e chama a isso de política cultural. Para a cultura produzida pelo povo, só aparecem ações de controle e repressão.

O caos criativo
“Quem não consegue viver um minuto de desordem, jamais conseguirá descobrir uma nova ordem”, professa Haddad que, durante a ditadura, foi buscar o teatro de rua como forma de sobrevivência à repressão. “Eu sou uma contradição do governo [de Emílio Garrastazu] Médici [1969-1974] que, sem querer, nos jogou nesse lugar maravilhoso de salvação fora das áreas de poder, na periferia, nas praças, nas ruas”, diz.
Nos anos 80, como Augusto Boal, como os blocos de carnaval, como os movimentos populares, o Tá na Rua surgiu para ocupar os espaços públicos. “Nos anos 80, a gente trabalhava no presente em busca de um outro futuro”, lembra.
E hoje o que mantém este teatro? “A gente se apóia no conteúdo político da liberdade de expressão. Trabalha com as contradições, com as opressões. O espetáculo é a forma de organização mais perfeita das relações entre o particular e o coletivo. O espetáculo traz esse sabor de utopia. Trabalhando na rua, você atinge esse lugar. E proporciona a todos a experiência de viver, por alguns instantes, a utopia. Nós acreditamos que viver isso dá ânimo para a pessoa viver mais dez anos com esperança, acreditando que é possível mudar o mundo”, explica Haddad.
Fonte: Brasil de Fato

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