sábado, 14 de maio de 2011

A luta de classes no Winconsin


01 de Abril de 2011
ESTADOS UNIDOS
A luta de classes no Winconsin
O movimento dos trabalhadores nos Estados Unidos renasce com força em meio ao processo de destruição dos sindicatos do setor público. Em Los Angeles, São Francisco, Denver, Chicago, Nova York e Boston, Milhares de pessoas foram às ruas manifestar o apoio aos insurgentes.
por Rick Fantasia
De uma hora para outra e quase sem nenhum aviso, a cidade de Madison, no Wisconsin, tornou-se o centro do universo social dos Estados Unidos. Durante quatro semanas, centenas de funcionários públicos e estudantes ocuparam – com protestos pacíficos, mas barulhentos – o saguão do Capitólio de Wisconsin (sede do governo estadual), enquanto outros milhares de manifestantes rodeavam o edifício do lado de fora. Paralelamente, enormes protestos se levantavam contra os governos de outros estados, como na cidade de Harrisburg, capital da Pensilvânia; Richmond, na Virginia; Boise, em Idaho; Montpelier, em Vermont; e Columbus, em Ohio. E não parou por aí: em Los Angeles, São Francisco, Denver, Chicago, Nova York e Boston, milhares de pessoas foram às ruas manifestar o apoio aos insurgentes.
O chamado “walk like an egyptian” (“ande como um egípcio”, título de um hit musical dos anos de 1980) foi respondido por milhares de pessoas que, inspiradas pelo momento político mundial, se organizaram para expressar a indignação em relação a medidas políticas estaduais. A demanda era simples e clara: queriam a revogação da lei draconiana instituída pelo governador republicano que atingia diretamente o sindicalismo do setor público em Wisconsin. Apesar do projeto de lei ter sido aprovado pela maioria republicana no legislativo e de governadores de outros estados também levarem adiante medidas antissindicais parecidas, a batalha de Wisconsin cumpriu um papel: reavivou um movimento de classe em processo de destruição.
O conflito foi exitoso à medida que centenas de milhares de membros da classe trabalhadora estadunidense despertaram do sono da imobilidade e despolitização e incitaram uma onda de protesto coletivo adormecida por quase 75 anos – mas que agora dá sinais de não querer retroceder tão cedo. A ação do governador do Wisconsin, Scott Walker, teve efeito reverso: ao tentar solapar os direitos dos trabalhadores, ressaltou sua importância, ao mesmo tempo que decepcionou milhões de eleitores da classe trabalhadora (chamados de “democratas de Reagan”) há décadas manipulados para votar contra seus próprios interesses.
As medidas foram anunciadas como cortes no orçamento para regular a máquina pública, mas em última instância privavam os funcionários públicos de seus direitos sindicais. O cenário tornou-se claro para todos quando os sindicatos de funcionários públicos finalmente aceitaram atender às demandas econômicas de Walker, mas com a condição de manutenção dos direitos de negociação coletiva. Walker recusou categoricamente. “Este é o nosso momento”, afirmou ele para a voz do outro lado da linha, cujo dono era um ativista pró-sindicalismo que, com o desconhecimento do governador, se fez passar por um dos bilionários irmãos Koch.
Entre as famílias mais ricas do planeta, os direitistas David e Charles Kochforam benfeitores de diversas iniciativas antissindicais pelo país e, não por acaso, foram os maiores doadores da campanha eleitoral do governador Walker – como pessoa física e através da empresa da família, a Koch Industries. Na mencionada conversa telefônica – gravada e depois exibida para milhões de pessoas pela televisão, rádio e internet –, Walker explicitamente se compara ao presidente Ronald Reagan, que começou um governo presidencial com a audaciosa medida de demitir 12 mil controladores de voo em greve, em 1981. Três décadas depois, Walker arquitetou seu ataque inspirado no legado de Reagan e em função de suas grandes ambições políticas. Nessas circunstâncias, qualquer negociação ou compromisso com os trabalhadores estava fora de cogitação.
A nova lei foi desenhada para debilitar as organizações sindicais a partir de mudanças nos mecanismos básicos de manutenção de suas estruturas. Por exemplo, institui a necessidade de eleições anuais para determinar o apoio dos membros ao sindicato, acaba com a dedução automática da contribuição sindical e torna qualquer contribuição ao sindicato facultativa. Além dessas medidas, a lei limitou severamente os pontos negociáveis com os sindicatos. Apenas o direito de negociação salarial foi mantido integralmente, mas veio acompanhado estrategicamente de uma obrigação estatutária que restringe a indexação dos salários à inflação, virtualmente anulando uma moeda de troca chave dos sindicatos. Outros temas de negociação foram sumariamente proibidos.
Vale lembrar que a sociedade estadunidense goza de pouquíssimos benefícios sociais por parte do Estado e a consequência disso é que as negociações coletivas se tornaram determinantes na conquista de mais provisões sociais. Tanto no setor público como no privado, a ausência de um sindicato fortalecido para negociar com o empregador tende a estagnar os salários, manter as condições precárias de trabalho e reafirmar a quase inexistência de políticas de apoio social. Em outras palavras, isso significa que, sem o respaldo de um sindicato, a maioria dos trabalhadores braçais e não profissionalizados simplesmente não pode arcar com os custos de uma aposentadoria decente, de um seguro de saúde familiar acessível, férias remuneradas, licença-maternidade ou qualquer outro benefício disponível para cidadãos de uma sociedade industrializada.1
As medidas de Walker e de outros governadores republicanos para enfraquecer os núcleos de reivindicação do setor público buscam, na realidade, atingir os últimos bastiões da força sindical nos Estados Unidos. No setor privado, os salários e as condições de trabalho vêm decaindo há décadas. A participação sindical foi reduzida a 7% (contra 33% na década de 1950) por uma combinação de fatores, como medidas corporativas para dificultar as ações dos sindicatos, terceirização do trabalho e desindustrialização (incluindo a redução de capital em fábricas sindicalizadas em benefício das não sindicalizadas). Essas medidas implicam no aumento imediato dos lucros de acionistas.
A situação no setor público é bem diferente. Os empregadores públicos (governantes e dirigentes municipais e estaduais) tradicionalmente sempre contaram com o apoio eleitoral do funcionalismo público e, em troca, garantiram contratos sindicais com ênfase em custos de longo prazo (como saúde, pensão e benefícios), em vez de privilegiar o aumento imediato dos salários – que aplicado no curto prazo pode criar rombos no orçamento. O resultado desse arranjo é a garantia de benefícios e respaldo social a milhões de pessoas que correspondem a 36% do funcionalismo público de todo o país, como professores de escolas públicas, trabalhadores de serviços municipais, médicos, motoristas, escrivães, funcionários de universidades e repartições jurídicas, policiais, bombeiros. Os ataques ao setor público visam restringir os benefícios desses trabalhadores e destruir uma importante fonte de organização política que apoia o Partido Democrata. Se os objetivos forem alcançados, o resultado será uma sociedade completamente sem sindicatos e sem contraponto ao poder das corporações.
Antes dessas investidas, o governador Scott Walker era um político praticamente desconhecido fora de sua jurisdição e ascendeu ao poder nas eleições de novembro de 2010 como membro do Tea Party, facção de republicanos de ultradireita que ganhou o pleito em vários municípios e Estados do país.2 Na campanha, o discurso de Walker enfatizava os cortes no orçamento, mas o então candidato nunca mencionou qualquer coisa sobre os sindicatos. Em três meses desde que tomou posse, diminuiu os impostos de empresas, e as cobranças sobre a renda de pessoas físicas abastadas antes de decretar uma “crise no orçamento”. Essa crise seria resolvida, segundo ele, não apenas com cortes no crédito destinado aos mais pobres e com o aumento dos impostos pagos pelo funcionalismo público para saúde e pensão (aumento de 5,8% e 12%, respectivamente), mas também com a redução dos direitos reivindicativos dos funcionários públicos. Os sindicatos da polícia e dos bombeiros, porém, ficariam de fora das novas medidas, já que foram setores-chave no apoio à sua candidatura durante as eleições. Walker parece seguir minuciosamente o roteiro da “doutrina do choque”, pois logo ficou evidente que a falsa crise do orçamento estaria sendo evocada com outro objetivo: desmantelar os sindicatos do setor público, a única força política organizada e que só no Estado de Wisconsin representa 300 mil funcionários públicos.
“walk like an egyptian”
O extraordinário drama social produzido pelas medidas governamentais e a resposta inesperada da população foram o grande tema nacional por semanas. Slogans como “Kill the Bill” (“matem a lei”, também trocadilho para o célebre filme “Kill Bill”) e “walk like an egyptian” ecoavam entre as multidões. Os manifestantes ganharam o apoio de 14 senadores democratas do congresso estadual, que trataram de sair de Wisconsin para impedir a formação de quorum na votação do projeto de lei e não serem forçados legalmente a participar do plenário. Durante a batalha, o grupo apelidado de “Wisconsin 14” permaneceu do outro lado da fronteira, no Illinois, onde não podiam ser alcançados pelas leis de seu estado, nem pela polícia, que já havia deslocado efetivos para monitorar a casa dos senadores caso voltassem ao país. Após três semanas dessa tentativa de neutralização, os republicanos realizaram uma manobra: tiraram da lei as partes que restringiam e impunham medidas para a negociação salarial com os sindicatos – o que tornou ainda mais explícita a tentativa do governo de desmantelar o sindicalismo público – e permitiu a votação e a aprovação do projeto sem o quorum legal. Foi uma vitória para Walker e os republicanos, mas com um custo político altíssimo.
Em 12 de março, o dia seguinte à aprovação da lei, os integrantes do Wisconsin 14 voltaram a Madison e foram recebidos como heróis, ovacionados por mais de 150 mil trabalhadores dos setores público e privado e suas famílias, além de trabalhadores de fazendas (numa comitiva de 50 tratores) e milhares de estudantes da Universidade de Wisconsin. Eclodiram ameaças de greve geral por parte não de trotskistas, mas de líderes sindicais dos bombeiros e dos professores, tática avaliada por especialistas na televisão como uma resposta razoável ao ocorrido.

A situação poderia ser apenas um clichê em muitas sociedades, mas no contexto estadunidense é extraordinária. Dela também resultou a ação programática de organizar uma petição para cassar o mandato de oito senadores republicanos, esforço inédito de modificar o cenário político na legislatura estadual. O governador não pode ser deposto até completar um ano no cargo, mas é provável que a futura data seja incontornável nos calendários de Wisconsin. Enquanto os republicanos empreendem uma campanha contra alguns dos democratas “fugidos”, a opinião pública está firme do lado do grupo Wisconsin 14. A situação permitiu que muitas pessoas testemunhassem pela primeira vez e com muita clareza, o que os republicanos têm reservado para elas. Sondagens de opinião mostraram o apoio da população aos sindicatos e à preservação dos direitos coletivos de negociação (entre 60% e 70% no Estado do Wisconsin e nacional).
Nos estados da Flórida e Nova Jersey, governadores republicanos estavam afiando suas facas contra os sindicatos públicos, mas retrocederam ao ver a resposta dessa política em Wisconsin. Em Indiana, legisladores democratas seguiram o exemplo dos colegas de Wisconsin e voaram para Illinois na tentativa de inviabilizar em seu próprio estado a votação de leis contra os sindicatos públicos. Projetos de lei desse teor estão avançando em Michigan e Idaho; em Ohio, o debate sobre o tema toma conta do plenário. A luta é nacional.
Se os esforços políticos estão claramente orientados contra os sindicatos, essa batalha está longe do fim. Sim, o antissindicalismo está profundamente enraizado nas instituições e na cultura estadunidense, e o poder das corporações está infiltrado no sistema político como nunca esteve na história do neoliberalismo. Por outro lado, nem o movimento sindical estadunidense nem o Partido Democrata têm muita experiência e interesse em manter uma ação coletiva, a não ser que esteja estritamente sob seu controle, orientada unicamente para seus horizontes sociais estreitos. No entanto, a batalha em Wisconsin se espalhou rapidamente como um incêndio, ultrapassando os limites imaginados pela sociedade estadunidense. Todos sabem o que está em jogo daqui para a frente.
Trinta anos atrás, a ousada atitude antissindical de Reagan pareceu lançar um feitiço sobre a população dos Estados Unidos, que mergulhou num longo sono de desarticulação social. A ironia é que, ao imitar Reagan, o governador Walker talvez tenha, ele mesmo, desfeito esse encanto.
Ilustração: Darren Hauck / Reuters
1 R ick Fantasia e Kim Voss, Sindicatos domésticos:repressão patronal e resistência sindical nos EUA,Raisons d’Agir, Paris, 2003.
2 R ick Fantasia, “Ces deux gauches américaines qui sígnorent”, Le Monde Diplomatique, nº 681, dez/2010, p.6-7.
Palavras chave: EUA, Protesto

Matéria originalmente publicada em http://diplomatique.uol.com.br/artigo.php?id=913

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