sábado, 18 de julho de 2015

Blues da piedade



A tradição dos oprimidos nos ensina que o "estado de exceção" em que vivemos é na verdade a regra geral. Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade. Nesse momento, perceberemos que nossa tarefa é originar um verdadeiro estado de exceção; com isso, nossa posição ficará mais forte na luta contra o fascismo. Este se beneficia da circunstância de que seus adversários o enfrentam em nome do progresso, considerado como uma norma histórica. O assombro com o fato de que os episódios que vivemos no séculos X "ainda" sejam possíveis, não é um assombro filosófico. Ele não gera nenhum conhecimento, a não ser o conhecimento de que a concepção de história da qual emana semelhante assombro é insustentável.
(Walter Benjamin)

Esse é um trecho das famosas teses sobre a história de Walter Benjamin, seu significado, no entanto, é mais simples do que parece. Retomando o conceito de luta de classes elaborado por Marx, e no qual a classe trabalhadora no capitalismo, é uma classe tão explorada, subtraída de seu próprio direito de subsistir, sendo obrigada a vender sua força de trabalho (o último meio de produção que lhe resta) por qualquer valor para poder sobreviver.

Mas as classes, tanto a burguesa, quanto a trabalhadora não são monolíticas, são compostas por diversas frações, que terminam por cumprir determinados papéis dentro das relações de produção, mas também dentro da estrutura e superestrura que compõem a sociedade.

Por exemplo, dentro da classe trabalhadora, alguns elementos sofrem processos de opressão que fazem cumprem um papel fundamental para se manter a principal opressão – a saber, a exploração da mais valia dentro do processo produtivo – camuflada. Afinal, o trabalhador homem, ou branco, termina por sentir-se “melhor” e esquece da sua exploração, quando reproduz o machismo ou o racismo. Dessa maneira, esses elementos mais explorados sofrem uma dupla opressão, a de classe pela classe, e a da própria classe sobre si. O elemento ideológico então cumpre seu papel muito bem de camuflar as relações de exploração.

Como dito antes, as classes não são monolíticas, há por exemplo, dentro da burguesia, aqueles que apesar de sua boa condição de vida, de se identificar com os explorados, por conta de suas experiências de vida, ou por viver mesmo as opressões e por isso sentir na pele as contradições do capitalismo, “passando” de lado dentro do capitalismo. A definição de Antonio Gramsci sobre intelectuais orgânicos compreende justamente esses elementos, que passam a cumprir o papel de gerar teoria, obras, que fazem com que a classe trabalhadora, os explorados, compreendam seu papel de explorados, se organizem e passem a lutar contra essa condição.

Dito tudo isso, trago aqui uma poesia de Cazuza, que continua muito atual, mesmo 25 anos após sua morte. Cazuza era privilegiado, poderia ser um playboy, devido à sua condição de vida (seu pai era diretor da gravadora Som Livre). Mas não se prendeu nessa condição, e sofrendo ele mesmo diversas opressões (era homossexual assumido, em uma época que isso era mal visto na sociedade brasileira, e contraiu o vírus da AIDS que terminou por leva-lo à morte, em uma época que as pessoas com o vírus eram vistos como radioativos). Essa condição, fez com que ele compusesse canções marcantes tanto sobre o amor (como “Exagerado”, “Faz Parte do Meu Show”, “Codinome Beija Flor”), mas principalmente sobre as contradições da sociedade brasileira e da sociedade capitalista (como “O Tempo não Para”, “Brasil”, “Burguesia”, “Ideologia” e principalmente nesse caso “Blues da Piedade”).

Em um momento no qual disseminou-se na sociedade brasileira ideias conservadoras, que se tornaram hegemônicas, “Blues da Piedade” de Cazuza continua muito atual e principalmente um manifesto para todos aqueles que são explorados ou discriminados, seja pela cor da sua pele, por suas preferências, por sua cultura. “Blues da piedade” é um tapa na cara de Bolsonaro, Malafaia, Feliciano, Eduardo Cunha, etc., a prova de que os explorados não esmorecem, não desistem e continuaram por muito tempo a ser uma pedra no sapato. Parafraseando Walter Benjamin, vamos continuar a gerar o verdadeiro Estado de exceção, aquele que serve para acabar com todas as outras “exceções”.

“Blues da piedade
(Cazuza)
“Agora eu vou cantar pros miseráveis
Que vagam pelo mundo derrotados
Pra essas sementes mal plantadas
Que já nascem com cara de abortadas
Pras pessoas de alma bem pequena
Remoendo pequenos problemas
Querendo sempre aquilo que não têm

Pra quem vê a luz
Mas não ilumina suas minicertezas
Vive contando dinheiro
E não muda quando é lua cheia
Pra quem não sabe amar
Fica esperando
Alguém que caiba no seu sonho
Como varizes que vão aumentando
Como insetos em volta da lâmpada

Vamos pedir piedade
Senhor, piedade
Pra essa gente careta e covarde
Vamos pedir piedade
Senhor, piedade
Lhes dê grandeza e um pouco de coragem

Quero cantar só para as pessoas fracas
Que tão no mundo e perderam a viagem
Quero cantar o blues
Com o pastor e o bumbo na praça
Vamos pedir piedade
Pois há um incêndio sob a chuva rala
Somos iguais em desgraça
Vamos cantar o blues da piedade

Vamos pedir piedade
Senhor, piedade
Pra essa gente careta e covarde
Vamos pedir piedade
Senhor, piedade
Lhes dê grandeza e um pouco de coragem”