A
tradição dos oprimidos nos ensina que o "estado de exceção" em que
vivemos é na verdade a regra geral. Precisamos construir um conceito de
história que corresponda a essa verdade. Nesse momento, perceberemos que nossa
tarefa é originar um verdadeiro estado de exceção; com isso, nossa posição
ficará mais forte na luta contra o fascismo. Este se beneficia da circunstância
de que seus adversários o enfrentam em nome do progresso, considerado como uma
norma histórica. O assombro com o fato de que os episódios que vivemos no
séculos X "ainda" sejam possíveis, não é um assombro filosófico. Ele
não gera nenhum conhecimento, a não ser o conhecimento de que a concepção de
história da qual emana semelhante assombro é insustentável.
(Walter
Benjamin)
Esse
é um trecho das famosas teses sobre a história de Walter Benjamin, seu
significado, no entanto, é mais simples do que parece. Retomando o conceito de
luta de classes elaborado por Marx, e no qual a classe trabalhadora no
capitalismo, é uma classe tão explorada, subtraída de seu próprio direito de subsistir,
sendo obrigada a vender sua força de trabalho (o último meio de produção que
lhe resta) por qualquer valor para poder sobreviver.
Mas
as classes, tanto a burguesa, quanto a trabalhadora não são monolíticas, são
compostas por diversas frações, que terminam por cumprir determinados papéis
dentro das relações de produção, mas também dentro da estrutura e superestrura
que compõem a sociedade.
Por
exemplo, dentro da classe trabalhadora, alguns elementos sofrem processos de
opressão que fazem cumprem um papel fundamental para se manter a principal
opressão – a saber, a exploração da mais valia dentro do processo produtivo –
camuflada. Afinal, o trabalhador homem, ou branco, termina por sentir-se “melhor”
e esquece da sua exploração, quando reproduz o machismo ou o racismo. Dessa
maneira, esses elementos mais explorados sofrem uma dupla opressão, a de classe
pela classe, e a da própria classe sobre si. O elemento ideológico então cumpre
seu papel muito bem de camuflar as relações de exploração.
Como
dito antes, as classes não são monolíticas, há por exemplo, dentro da
burguesia, aqueles que apesar de sua boa condição de vida, de se identificar com
os explorados, por conta de suas experiências de vida, ou por viver mesmo as
opressões e por isso sentir na pele as contradições do capitalismo, “passando”
de lado dentro do capitalismo. A definição de Antonio Gramsci sobre
intelectuais orgânicos compreende justamente esses elementos, que passam a
cumprir o papel de gerar teoria, obras, que fazem com que a classe
trabalhadora, os explorados, compreendam seu papel de explorados, se organizem
e passem a lutar contra essa condição.
Dito
tudo isso, trago aqui uma poesia de Cazuza, que continua muito atual, mesmo 25
anos após sua morte. Cazuza era privilegiado, poderia ser um playboy, devido à
sua condição de vida (seu pai era diretor da gravadora Som Livre). Mas não se
prendeu nessa condição, e sofrendo ele mesmo diversas opressões (era
homossexual assumido, em uma época que isso era mal visto na sociedade brasileira,
e contraiu o vírus da AIDS que terminou por leva-lo à morte, em uma época que
as pessoas com o vírus eram vistos como radioativos). Essa condição, fez com
que ele compusesse canções marcantes tanto sobre o amor (como “Exagerado”, “Faz
Parte do Meu Show”, “Codinome Beija Flor”), mas principalmente sobre as
contradições da sociedade brasileira e da sociedade capitalista (como “O Tempo
não Para”, “Brasil”, “Burguesia”, “Ideologia” e principalmente nesse caso “Blues
da Piedade”).
Em
um momento no qual disseminou-se na sociedade brasileira ideias conservadoras,
que se tornaram hegemônicas, “Blues da Piedade” de Cazuza continua muito atual
e principalmente um manifesto para todos aqueles que são explorados ou discriminados,
seja pela cor da sua pele, por suas preferências, por sua cultura. “Blues da
piedade” é um tapa na cara de Bolsonaro, Malafaia, Feliciano, Eduardo Cunha,
etc., a prova de que os explorados não esmorecem, não desistem e continuaram
por muito tempo a ser uma pedra no sapato. Parafraseando Walter Benjamin, vamos
continuar a gerar o verdadeiro Estado de exceção, aquele que serve para acabar
com todas as outras “exceções”.
“Blues da piedade
(Cazuza)
“Agora eu vou cantar pros
miseráveis
Que vagam pelo mundo
derrotados
Pra essas sementes mal
plantadas
Que já nascem com cara de
abortadas
Pras pessoas de alma bem
pequena
Remoendo pequenos
problemas
Querendo sempre aquilo
que não têm
Pra quem vê a luz
Mas não ilumina suas
minicertezas
Vive contando dinheiro
E não muda quando é lua
cheia
Pra quem não sabe amar
Fica esperando
Alguém que caiba no seu
sonho
Como varizes que vão
aumentando
Como insetos em volta da
lâmpada
Vamos pedir piedade
Senhor, piedade
Pra essa gente careta e
covarde
Vamos pedir piedade
Senhor, piedade
Lhes dê grandeza e um
pouco de coragem
Quero cantar só para as
pessoas fracas
Que tão no mundo e
perderam a viagem
Quero cantar o blues
Com o pastor e o bumbo na
praça
Vamos pedir piedade
Pois há um incêndio sob a
chuva rala
Somos iguais em desgraça
Vamos cantar o blues da
piedade
Vamos pedir piedade
Senhor, piedade
Pra essa gente careta e
covarde
Vamos pedir piedade
Senhor, piedade
Lhes dê grandeza e um
pouco de coragem”