A literatura de fantasia é focada
no mito do herói, sua trajetória até a redenção e a salvação da sociedade a
qual pertence, por sua semelhança com os mitos redentores religiosos, a sua sensibilização
com o leitor se torna mais fácil. Ao mesmo tempo ela se molda ao tempo
histórico no qual ela é escrita e publicada, de Rei Arthur até Harry Potter, e terminam
por representar as ideias da classe dominante.
Os romances de cavalaria como Rei
Arthur eram dedicados aos destacados senhores feudais do período como os reis,
ou serviam para manter a esperança de unificação através da construção de uma
identidade nacional para ficar no exemplo de Rei Arthur novamente. Com o
desenvolvimento da imprensa, a literatura será fundamental na construção das
línguas modernas e sua disseminação, muito embora até meados do século XX a
alfabetização ainda foi um luxo para boa parte da população mundial.
Com o aumento da alfabetização após
a Segunda Guerra Mundial (como uma das conquistas dos trabalhadores, e para
tentar combater o comunismo), a literatura de fantasia se tornará um dos nichos
de mercado com mais leitores.
O maior expoente dessa literatura
de fantasia moderna será o sul africano J. R. R. Tolkien
,
em suas principais obras, o Hobbit, e os três livros da série o Senhor dos Anéis,
Tolkien criará um mundo fantástico com criaturas fantásticas, povos com uma
história própria, e até mesmo uma língua (Tolkien era especialista em inglês
arcaico). Serão obras lidas por milhões de pessoas, mas não isentas de
polêmicas, principalmente no que diz respeito aos homens. A Terra Média, o
mundo criado por Tolkien, era um retrato da própria Europa do período da
Segunda Guerra Mundial, os orientais e os negros,por exemplo, são vistos de
forma preconceituosa e por serem inferiores são dominados por Sauron o Senhor
da Escuridão (que pode representar tanto os soviéticos como os nazistas),
principalmente quando comparados à raça dos reis dos homens, nativos da Ilha de
Numenor (uma clara analogia com a Inglaterra), e descendentes da união carnal
entre elfos e homens.
Os Hobbits ,por exemplo, representam a aversão do autor à
opressão moderna representada pelo mundo industrial, seu modo de vida simples,
idílico, contrasta bem com a modernidade imposta à força por Saruman. Os
cavaleiros de Rohan, fundamentais para ajudar os descendentes dos reis, os
gondorianos, representam a ajuda dos estadunidenses na guerra aos ingleses para
derrotar os alemães.
Colega de Tolkien, e convertido
ao cristianismo, C.S Lewis outro inglês expoente da literatura de fantasia, em
suas Crônicas de Nárnia, fazia uma analogia com o cristianismo. A adaptação de
sua obra ao cinema, embora visando lucros semelhantes ao de Senhor dos Anéis e
Harry Potter foi financiado por uma organização de cristãos fundamentalistas
dos EUA, que queriam disseminar os ensinamentos cristãos presentes nas
analogias das passagens da obra de Lewis.
Em Harry Potter, por mais que se
dê uma nova roupagem ao mito do herói, o mal representado por Voldemort, e
combatido por Potter o escolhido, lembra o nazismo, já que o antagonista
defendia um mundo no qual os “não mágicos” fossem subordinados aos “mágicos”,
apelando para uma pureza na “raça” dos mágicos.
Em Senhor dos anéis, Harry Potter
e Crônicas de Nárnia é possível traçar principalmente no núcleo desses
romances, ainda que uma tímida luta contra a opressão e contra a desigualdade,
a defesa da ideia do mito do herói, da redenção, estimula por outro lado a
individualidade, a luta pela liberdade, e a crença de crescimento individual
como motor do sucesso do indivíduo na sociedade burguesa, alguns dos cernes da
ideologia liberal propagada pela burguesia. Além de seu caráter mercadológico,
já que são produtos inteiramente inseridos na moderna indústria cultural.
Recentemente a literatura de
fantasia ganhou um novo fenômeno mercadológico, a série de fantasia, criada
pelo estadunidense George R. R. Martin, a Guerra dos Tronos. A Guerra dos
Tronos representa uma quebra paradigmática dentro desse nicho de vários
conceitos, além de se constituir em uma obra que representa a consolidação dos ideais
pós modernos e neoliberal pela literatura.
Na obra, a intestina e realista
luta pelo poder, permeada por traições, incesto, corrupção, sexo, quebra os
ideais de bondade presente no mito do herói, os protagonistas do livro, que
representam a honra, um dos atributos essenciais do herói são sempre
penalizados por essa honra. Como no mercado, onde o individualismo e a ânsia pela
conquista de mais poder (na sociedade capitalista, assim como em Westeros,
capital é poder, não à toa a casa dos banqueiros, a Lannister é a mais
poderosa, e faz dos honrados Starks, gato e sapato deles) é o que move todos os
personagens, todas as casas.
A destruição de crença, de
valores, de paradigmas, representadas pelo pós modernismo é uma constante,
apenas o individuo mais astuto, e com capital consegue vencer e prosperar, os
Starks, os honrados podem ser protagonistas, mas sua honra os impede de serem
ótimos competidores, ao contrário dos Lannister, que além de possuírem a base
material de poder, o capital, são excelente competidores por jogarem fora
qualquer acordo, amizade, laço de parentesco, em nome do poder, do capital.
Tamanha semelhança com a
sociedade burguesa atual faz da obra um exemplar do realismo, e não da
literatura fantástica. Ao invés da identificação direta com os ideais do mito
do herói e com a religião, é justamente o que o afasta dela que torna a obra um
sucesso. Como disse Karl Marx na Ideologia Alemã:
As ideias da classe dominante são, em todas as épocas, as
ideias dominantes, ou seja, a classe que é o poder material dominante da
sociedade é, ao mesmo tempo, o seu poder espiritual dominante. A classe
que tem à sua disposição os meios para a produção material dispõe assim, ao
mesmo tempo, dos meios para a produção espiritual, pelo que lhe estão assim, ao
mesmo tempo, submetidas em média as ideias daqueles a quem faltam os meios para
a produção espiritual. As ideias dominantes não são mais do que a expressão
ideal [ideell] das relações materiais dominantes, as relações materiais
dominantes concebidas como ideias; portanto, das relações que precisamente
tornam dominante uma classe, portanto as ideias do seu domínio.
A literatura, assim como o
cinema, pinturas, fotografia, música, não são separadas da sociedade, mas antes
de tudo um produto direto da sociedade e da época histórica na qual são criadas.
A literatura de fantasia, muito embora possua características claras de
mercadoria, possui como outras obras culturais esse caráter duplo de mercadoria
e de reprodução ideológica das ideias. Assim mesmo que dentro de analogias, a
literatura de fantasia termina por disseminar as ideias da burguesia. Em sua
fase de explosão com Tolkien e Lewis, ela ocorria de forma indireta, agora, com
Martin e sua Guerra dos Tronos ela é latente, a busca por poder, por capital,
pelo sucesso é o que vale, camaradagem, honra, solidariedade por sua vez é algo
ruim, que atrapalha o individuo, que o leva ao fracasso, não importa que em uma
sociedade onde o individualismo reine, a barbárie impere, afinal com tal grau
de individualismo o meu sucesso permite comprar proteção contra a barbárie dos
outros.
João Vicente Nascimento Lins 02/01/2013