quarta-feira, 28 de outubro de 2015

A arte contra a burocracia



Max Weber, o sociólogo alemão, considerado um dos principais da história da disciplina, via na burocracia um traço importante da vida social moderna, que permeava desde as relações sociais mais básicas, até principalmente as relacionadas ao poder. De fato, a burocracia aparenta ser uma forma de organizar a sociedade de um modo mais racional, eliminando discrepâncias individuais e se estabelecendo como algo capaz de tratar todos de modo igual e racional (sem emoções).
           
Não é fortuito que uma exacerbação do caráter impessoal da burocracia, seja sempre uma das facetas mais retratadas em romances distopicos no século XX. Basta lembra que esses autores viveram de perto a burocracia ser utilizada para por exemplo esquematizar um sistema de eliminação física em massa dos judeus e outras minorias pelos nazistas. Ou então do caráter vigilante que essa mesma estrutura poderia assumir em determinados períodos pelas mãos de certos governos.

Um dos maiores exemplos é o mundo criado por George Orwell em sua obra “1984”. Nele um Estado autoritário utilizava de uma enorme máquina burocrática para vigiar a população e manter-se no poder, perseguindo e reeducando aqueles que se posicionavam de modo contrário.
           
Mas a impessoalidade e suposta razão da burocracia também é exacerbada nas críticas feitas aos governos dos países do chamado “Socialismo real”, com grande destaque para a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e sua “polícia secreta, a KGB; e a República Democrática da Alemanha (Alemanha Oriental) com a “Stasi”. Nesse caso, as máquinas estatais são retratadas quase como um “tipo ideal weberiano” no que diz respeito ao estereótipo delas. Os filmes e obras literárias, as pintam como tendo um controle de vigilância extremo sobre sua população, adiantando coisas que somente numa sociedade hiperconectada, como a de agora seria crível.
           
É o caso do filme alemão de 2006, “Das Leben der Anderen”, traduzido aqui no Brasil como “A vida dos outros”. A película ganhadora do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, é primoroso no que diz respeito aos seus aspectos técnicos. Possui um roteiro muito bom, bem como a direção. Utiliza de uma fotografia que retrata o mundo com tons mais sombrios, exatamente como um mundo oprimido e vigiado, por uma estrutura burocrática tão forte quanto a Stasi do filme, deveria ser.
           
A história fala de como essa estrutura de vigilância poderia ser utilizada de modo corrupto por algum alto dirigente do Estado. No caso um Ministro (Thomas Thieme) manda vigiar o dramaturgo Georg Dreyman (Sebastian Koch), tentando achar qualquer brecha para prendê-lo, e assim afasta-lo de sua namorada, a atriz Chista-Maria (Martina Gedeck), para torná-la amante somente do ministro. Mas o centro do filme não reside nesse triangulo amoroso, e sim, em como a máquina burocrática termina por desumanizar as pessoas, e o modo como a arte faz exatamente o contrário, ou seja, contribui para humanizar o burocrata, e nisso a personagem central é o investigador Hauptmann Gerd Wiesler (vivido por Ulrich Muhe).
           
Wiesler é o típico burocrata, vive por e para seu trabalho, acreditando servir o país e seu partido da melhor maneira. Ele começa o filme ensinando técnicas de tortura, como se ensina a tabuada do 2, ou seja, como algo natural e sem consequências nefastas para os torturados. Tanto que não titubeia em assumir a vigilância sobre o casal em nenhum momento, acreditando tal como seu chefe, de que eles podem vazar informações para a Alemanha Ocidental. Mas, seu contato com a interessante vida do dramaturgo, o faz começar a ver possibilidades diferentes para sua vida que não seja o seu trabalho.


Há um contraste visual muito grande entre o apartamento do escritor, com livros, pianos, muitos móveis, adereços e o “espartano” apartamento do investigador. A vida de Dreyman é mais leve, ele é rodeado de amigos, enquanto o contato mais próximo de Wiesler é seu chefe. A própria afetividade entre Mara e Dreyman é contrastada com Wiesler, que precisa pagar uma prostituta, caso queira algum carinho.

O investigador é bombardeado por duas quebras na sua rotina, a alegre vida de Dreyman, com toda sua cultura e pela utilização particular do aparelho do Estado pelo Ministro, o que o faz repensar e leva à sua redenção final. É sintomático para essa mudança, que Wiesler comece a ler os livros de Dreyman, e ajude Mara em um momento na qual ela era chantageada pelo ministro. Nesses momentos o burocrata se humaniza, quando justamente se vê livre do cabresto que o era imposto.

Como ressaltado logo acima, o filme é um primor em sua parte técnica, mas não poderia ser considerado um clássico se ficasse preso só nesses aspectos, é justamente a contraposição entre a burocracia e arte, e seus papéis dentro da sociedade que ocasiona elementos interessantes para compreendermos o mundo atual, ainda que o filme erre por assim como seus semelhantes retratar o Estado socialista da Alemanha de modo estereotipado.

Ficha técnica
A vida dos outros (Das Leben der Anderen, Alemanha, 2006)
Direção: Florian Henckel von Donnersmarck
Roteiro: Florian Henckel von Donnersmarck
Com: Ulrich Muhe, Martina Gedeck, Sebastian Koch, Thomas Thieme

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